12 abril, 2015

O SACRIFÍCIO DE ANIMAIS NAS RELIGIÕES AFRO-GAÚCHAS

Norton F. Corrêa *






Norton F. Corrêa
O projeto de lei da deputada estadual Regina Becker Fortunatti, do PDT, visando proibir o sacrifício de animais, no batuque, supostas vítimas de maus tratos, reedita o de um deputado evangélico, em 2005, reprovado por 32 contra 2 votos. Mas esta gente é teimosa. A atual proposta, além de tendenciosa e discriminatória, por ignorar ou escamotear certos fatos, revela uma incompreensível incongruência ideológica da autora.

No chamado totemismo, certos animais, os totens, representavam o ancestral da tribo, que com o tempo foi divinizado. Simbolizando como que uma fusão entre o humano e o divino, o animal-deus era ritualmente sacrificado, preparado e ingerido pelo grupo, características presentes em religiões como o catolicismo, o batuque e o judaísmo.

No catolicismo, Cristo, também figurado como um cordeiro, é oferecido a deus-pai, a carne e o sangue (pão e vinho) sendo consumidos pelo padre e/ou fieis.


No batuque, o processo é similar. Cada animal “pertence” a certa divindade e é imolado para ela, sendo a carne preparada e ingerida pelos participantes do ritual. O sangue, símbolo maior da vida, é oferecido ao orixá, representado por objetos rituais. Alimentado, ele tem força para proteger os humanos. Na noite seguinte, na festa pública, “baixa” em seus iniciados, vem ao “mundo”, a possessão sendo a garantia de sua existência e poder, na visão do batuque, e consequentemente, de proteção. Ou seja, aí temos o objetivo maior do batuque, sua própria razão de existência, como religião. Observe-se, diferentemente do distante deus cristão, a divindade, através da possessão, está ali, presente, podendo ser consultada, ouvir súplicas, advertências, o que é fundamental, psicologicamente, para quem é pobre e negro, pois oprimido pela discriminação e o racismo. Por isto, o sacrifício de animais é o eixo em torno do qual a religião se estrutura. Face a estas questões, só um louco desvairado iria fazer um animal sofrer, pois cometeria sacrilégio gravíssimo justamente contra o deus a quem este é dedicado. E o autor do ato seria terrivelmente castigado pelo orixá, também na ótica batuqueira.

Como antropólogo, realizei pesquisas intensivas sobre o batuque, de 1969 a 1989. Em muitas ocasiões e vários templos, pude observar e fotografar cenas de sacrifício muito de perto. É sob o peso do argumento acima e desta longa vivência, que posso afirmar que ninguém maltrata animais, nos templos. Ou seja, a deputada, na melhor das hipóteses, ignora o que se passa por lá.

Nas sinagogas há também sacrifícios de animais e a técnica é idêntica à do batuque: o animal é suspenso pelas patas traseiras e tem a carótida cortada, morrendo em poucos segundos.


Mas nos matadouros, a questão é outra e bastante conhecida. São milhares de animais e de estabelecimentos produtores de carne, entre legalizados e clandestinos, e o processo de abate é diário e semelhante: os bois entram no brete à força de bastões elétricos e/ou aguilhadas. A morte, muito comumente, é com marreta, o animal, às vezes, apenas desmaia e, ao acordar, está sendo esfolado vivo. 

RACISMO À GAÚCHA

O Rio Grande do Sul é tido, com razão, como o estado mais racista do País. Exemplo concreto, expressões racistas são abundantes na literatura regional gaúcha, de João Simões Lopes Neto a autores mais recentes, inclusive do tradicionalismo. Em um caso significativo, o fenômeno é simplesmente escamoteado: historiador de certa fama, Walter Spalding afirma que não havia racismo, no antigo Rio Grande, pela pouca presença de negros: “apenas” 26.600, no século XVIII, mas não diz que era cerca de 30% da população da Província... E há os onipresentes “clubes de morenos”, dos rincões mais distantes à Capital, os livros didáticos. Menos palpáveis, mas efetivas, são perseguições e repressão (muitas das quais testemunhei ou soube pela imprensa), da igreja católica (e agora das evangélicas, com destaque para a IURD, significativamente muito toleradas, aliás) sobre manifestações culturais negras. Sobre a primeira, sua cúpula, historicamente, e a maior parte de seus ministros, é composta por descendentes de alemães, tidos, em geral, como muito racistas. As ordens italianas, mas em menor escala, também agem neste sentido.

Embora o IBGE informe que os afrodescendentes sejam 12% da população gaúcha, o número de templos afro-brasileiros, 30 mil ou mais, é muito superior aos do Rio, São Paulo ou Bahia. Quando me perguntam por esta aparente discrepância, a hipótese que levanto é que a força do racismo local foi o principal motivo que obrigou os escravizados e seus descendentes a criar formas de organização estruturadas em torno à cultura ancestral. Com efeito, os templos são espaços de sociabilidade, forjamento de identidades e de proteção física e espiritual contra um ambiente sócio-cultural extremamente hostil. Proibir o sacrifício de animais, no batuque, no korban judaico ou o simbólico, na missa, eixos dos respectivos sistema religiosos, é simplesmente acabar com tais religiões e, consequentemente, puxar o tapete existencial de seus integrantes. Sobre as religiões afro-brasileiras, particularmente, tais questões me levaram a concluir que é impossível aprofundar estudos sobre as religiões afro-brasileiras sem considerar o contexto das relações raciais que envolvem.


LÓGICA ILÓGICA
A proposta apresentada pela nobre deputada é inconstitucional por construção, pois desconsidera que “todos são iguais perante a lei”, já que visa uma só categoria, os batuqueiros. Se ignora o que ocorre nas sinagogas e nos matadouros (e nestes são sacrificados milhares de animais, por dia, que sofrem muito, sim), deveria ter se munido de mais dados, para propor a lei. Porém, se não ignora tudo isto, mas exclui sinagogas e matadouros, cabe supor o seguinte: ou lhe falta coragem para enfrentar a poderosa comunidade judaica e, idem, o Sindicato das Indústrias de Carne do RS (e perder votos para a reeleição), ou optou por ganhar ibope, posar de ecologista (para garantir votos) pelo modo mais fácil: atacar o segmento mais oprimido, pobre, frágil e estigmatizado da racista sociedade gaúcha, os batuqueiros, negros, em sua maioria. Mas tem mais: pergunto qual a lógica que moveu uma deputada do Partido Democrático Trabalhista, em nome do amor pelos animais, a propor uma lei altamente prejudicial justamente à classe que, por coerência política, deveria defender, os trabalhadores. A não ser que os animais supostamente maltratados pelos filiados à comunidade batuqueira sejam mais importantes, para ela, do que estes.

* Doutor em Antropologia, autor do livro O Batuque do Rio Grande Sul.

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