16 março, 2015

Quem é se axé, quem é de saravá e quem acredita que um mundo com respeito as diferenças é possível, vem com a gente!

UNIDOS SEREMOS FORTES!
Carta do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul - VII Marcha Pela Vida e Liberdade Religiosa 2015 - Redigida Pelo Babalorisa Prof. Hendrix Silveira a partir das reuniões organizativas da Marcha.
VII MARCHA ESTADUAL PELA VIDA E LIBERDADE RELIGIOSA
PORTO ALEGRE, 21 DE JANEIRO DE 2015
MANIFESTO DO POVO DE TERREIRO

“Um dos aspectos da barbárie europeia foi chamar de bárbaro o outro, o diferente, em vez de celebrar essa diferença e de ver nela uma ocasião de enriquecimento do conhecimento e da relação entre humanos.”
Edgar Morin
O cristianismo como base do eurocentrismo (LANDER) universalizado para a população mundial gerou o racismo como forma de dominação de outros povos, principalmente os africanos. Isso justificou a escravidão e depois a intolerância às tradições de matriz africana e afro-brasileiras. O conjunto destes elementos resultaram num processo epistemicida (SANTOS) dos saberes ancestrálicos africanos, o que provoca uma série de problemas para as comunidades tradicionais de matriz africana. Este processo nunca cessou. Persiste nos dias de hoje sob a forma de perseguição sistêmica e organizada que recrudesce os valores brancos ocidentais cristãos em detrimento de outras visões de mundo.
Racismo é “o preconceito baseado em distinções físicas socialmente significativas. Uma pessoa racista é aquela que acredita que alguns indivíduos são superiores ou inferiores a outros com base em diferenças racializadas.” (GIDDENS, p. 209) Temos entendido que a afroteofobia é uma das manifestações do racismo já que frequentemente é atribuído às tradições de matriz africana valores correlatos. A ideia racista de que os negros africanos – e consequentemente os afrodescendentes – são inferiores, primitivos, atrasados, fazem parte de uma sub-humanidade e, portanto, não têm capacidade para produzir nada de valor, é recorrente nos discursos de acusação às tradições de matriz africana.
A História tem nos mostrado que o Estado brasileiro sempre se esforçou na desqualificação do Povo Negro criando leis que criminalizavam suas práticas culturais. O resultado disso foi o surgimento do racismo institucional. No ano passado reivindicamos uma melhor adequação do Estado às demandas do Povo Negro e do Povo de Terreiro. Essas reivindicações ainda persistem já que nada foi feito. Reivindicamos a criação de uma Delegacia de Combate ao Racismo e a Intolerâncias Correlatas, além de educação e formação das polícias militar e civil para que se apropriem conceitualmente do que são as tradições de matriz africana. Capacitar delegados, juízes e advogados para atuarem com propriedade nas questões que envolvem as tradições de matriz africana e afro-brasileiras são pontos importantes para a erradicação do problema da intolerância religiosa. Para a garantia de que haja políticas públicas para o Povo Negro e, por extensão, para o Povo de Terreiro, demandamos a criação da Secretaria Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que servirá como uma instância de diálogo entre o Estado e a o Povo Negro e o Povo de Terreiro.
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O Batuque, o Candomblé e a Umbanda são as mantenedoras dos princípios éticos, morais e espirituais das civilizações africanas no estado do Rio Grande do Sul. Valores estes que interpretam as realidades humanas de forma integral e coletiva entre os mundos espiritual e o natural. Os espaços naturais são manifestações do sagrado, são hierofanias (ELIADE). Ter acesso a esses espaços é crucial para a manutenção da vida e da espiritualidade segundo a Teologia das tradições de matriz africana. Barrar esse acesso é crime de lesa à humanidade do Povo de Terreiro.
As encruzilhadas, os rios, as pedreiras, as cachoeiras, as matas, são espaços sagrados, altares naturais de estabelecimento de nossa relação espiritual com o transcendente. Impedir-nos de ter acesso a eles é nos tolher o direito constitucional de manifestarmos nossas crenças. Por isso reivindicamos ter acesso total aos espaços públicos da cidade e do estado.
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Todos os povos e tradições proclamam os seus heróis como exemplos, modelos a serem seguidos pela população. O herói nacional é Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, uma das lideranças da Inconfidência Mineira. Assassinado em 21 de abril de 1792, lutava pela independência do Brasil quando este ainda era uma colônia portuguesa. Sua morte pôs fim à Inconfidência, mas a memória do herói é sempre lembrada pelo feriado nacional instituído pelo dia de sua morte.
No Rio Grande do Sul o dia 20 de setembro, feriado estadual, lembra os heróis da Guerra Farroupilha. Os farroupilhas lutavam por reconhecimento de seus direitos pelo Império do Brasil e travaram uma guerra que durou dez anos. Uma guerra organizada por um grupo de estancieiros e charqueadores gaúchos contra todo o resto do país. A guerra foi perdida, mas suas intenções são sempre lembradas e comemoradas no dia que, em 1835, o General Bento Gonçalves da Silva invadiu e conquistou Porto Alegre.
A capital gaúcha possui quatro feriados, todos datas religiosas católicas. Em 2013 o Vereador Delegado Cleiton apresentou um projeto de lei que instituía o dia 20 de novembro, Dia Nacional e Estadual da Consciência Negra, feriado municipal. Mas, arbitrariamente, a Câmara Municipal defendeu a inconstitucionalidade do projeto com base em uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) interposta pelos senhores do capital gaúcho (FIERGS e FECOMÉRCIO) em 2003. Nenhum dos Srs. Vereadores, tampouco nosso prefeito, José Fortunati, questionam o mérito do PLL 365/13, contudo a alegação de inconstitucionalidade, como nos alerta Dias (2015), está circunscrita a uma interpretação da Lei Federal 9.093/95 cujo ponto de partida é subjetivo muito embora objetivado por uma premissa que dá atenção aos donos dos meios de produção e não ao povo. Zumbi é o nosso herói. É o herói daqueles que lutam pela liberdade e democracia. É o herói do Povo Negro que luta contra a opressão imposta pelo racismo. É o herói do Povo de Terreiro que luta contra a Afroteofobia.
[…] essas aventuras de heróis são mais do que o enredo da história; elas falam, por metáforas, da aventura humana pela vida. Os desafios do herói são nossos […] Assim, muitos traços que o herói demonstra para responder os desafios da jornada simbolizam aqueles recursos pessoais a que todos nós devemos recorrer para enfrentar os desafios da vida. (FORD, 1999. p. 31)
Reivindicamos, pois, que o Sr. prefeito reavalie a sua decisão e reverta a sua resolução.
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Em 2013 a Comissão da Diversidade Religiosa do Estado encomendou a produção de uma cartilha de conscientização da diversidade religiosa destinada ao trabalho educativo em escolas da rede estadual com a intenção de construir, tanto nos educandos quanto nos educadores, um sentimento de respeito e tolerância diante dessa diversidade. Por motivos desconhecidos esta cartilha não foi produzida, embora seu texto esteja pronto.
Entendendo que a escola é a grande reprodutora de valores e o braço ideológico do Estado (FREIRE), é de crucial importância que esta cartilha seja produzida. Nós, Povo de Terreiro, cremos no respeito à diversidade. Cremos que a barbárie só pode ser afastada pela Educação, e que essa Educação deve contemplar positivamente a pluralidade étnico-racial, cultural e religiosa da população. Com isso reivindicamos a produção dessa cartilha.
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O processo social que vivenciamos é o de despertar de uma sociedade que conhecia todos os seus deveres, mas nenhum dos seus direitos. Hoje entendemos que temos direitos, mas está tão arraigado no inconsciente coletivo a sua ausência que precisamos lutar para que esses direitos se materializem de fato. Por isso marchamos, pois unidos seremos sempre fortes!
Púpọ̀ Àṣẹ Gbogbo!
Prof. Me. Bàbá Hendrix Silveira
Comissão Organizadora da VII Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa

Referências:
DIAS, Gleidson Renato Martins. Fortunati e o veto do feriado do dia da Consciência Negra em Porto Alegre: a utilização do tecnicismo para esconder a subserviência aos poderosos. Disponível em: <http://www.sul21.com.br/…/fortunati-e-o-veto-do-feriado-do…/>. Acesso em: 19 jan. 2015.
ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989. 203 p.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 184 p.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed Editora S. A., 2005. 598 p.
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. 130 p.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um ocidente não-ocidentalista?: a filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: SANTOS, B. S.; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 445-486

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